Tema bastante discutido na relação existente entre beneficiário e operadora de planos de saúde é a responsabilidade / obrigatoriedade de cobertura das despesas oriundas de procedimento cirúrgico de Transgenitalização, ou seja, cirurgia para a readequação sexual.

Inicialmente, faz-se necessário apontarmos que o procedimento cirúrgico acima mencionado decorre de tratamento já em curso, realizado por pessoas que apresentem desafino entre seu sexo biológico e sua identidade de gênero. Em outras palavras, trata-se da continuidade de tratamento para a mudança de sexo que se dá após o tratamento hormonal e psicológico.

Neste aspecto, convém consignarmos que o direito ao tratamento para a readequação sexual, no qual a pessoa possa buscar a compatibilidade biológica à sua identidade de gênero, se enquadra perfeitamente no princípio da dignidade da pessoa humana, justamente para corrigir o descompasso existente.

Destaque-se que ao não garantir a realização do tratamento em sua completude, poder-se-ia imputar ao paciente a obrigação de, em muitos casos, suportar abalos psicológicos, fisiológicos e, ainda, em seu relacionamento pessoal.

Em que pese serem nítidos os benefícios, na prática, a maioria dos pedidos de cobertura para o procedimento cirúrgico é recusado, geralmente sob a alegação de se tratar de uma cirurgia estética ou por não estar o procedimento incluído no Rol da ANS.

No que tange à negativa de cobertura sob o pretexto de tratar-se de procedimento estético, cabe esclarecer que, na realidade, o tratamento mais se assimila a um procedimento reparador, posto que não se busca a melhora da forma física do paciente (como em uma cirurgia plástica comum), mas sim a adequação do corpo à sua identidade de gênero.

Atento à premissa de não ser a Transgenitalização um procedimento estético, o Tribunal de Justiça de São Paulo vem coibindo a conduta abusiva das operadoras e, por consequência, determinando o custeio do tratamento, como se observa dos julgados abaixo:

APELAÇÃO – PLANO DE SAÚDE – Segurada diagnosticada com desvio psicológico permanente de identidade sexual, com rejeição do fenótipo e com tendência à automutilação – Indicação médica para cirurgia de transgenitalização, do tipo neoconvulvoplastia – Negativa de cobertura – Impossibilidade – Havendo a cobertura da doença não poderá o plano de saúde limitar seu tratamento, negando-se ao custeio ou restringindo-se o número de sessões – A eleição da melhor terapêutica está sob a responsabilidade do médico e não do plano de saúde – Aplicação da Súmula 102 deste Tribunal de Justiça – Precedentes dessa Corte de Justiça. Sentença mantida. Recurso desprovido. (TJ-SP – AC: 10046732420208260291 SP 1004673-24.2020.8.26.0291, Relator: HERTHA HELENA DE OLIVEIRA, Data de Julgamento: 29/03/2022, 2ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 30/03/2022)

APELAÇÃO. PLANO DE SAÚDE. ALTERAÇÃO DE SEXO. Pretensão de custeio dos procedimentos cirúrgicos indicados pelo médico. Sentença de procedência, para condenar a ré a custear a cirurgia de acordo com a especificação técnica apresentada pela equipe médica indicada pela autora, junto ao Hospital Samaritano. Inconformismo. Acolhimento em parte. Cerceamento de defesa não configurado. Autos devidamente instruídos a permitir o julgamento seguro da causa. Impugnação ao valor da causa. Montante que corresponde ao proveito econômico perseguido, conforme orçamento juntado pela autora. Procedimentos que constam expressamente do Anexo I do Rol de Procedimentos da ANS, bem como há parecer que determina a cobertura de procedimentos relacionados à transgenitalização. Negativa indevida. Custeio fora da rede credenciada que tem caráter excepcional, só se justificando quando inexistir estabelecimento ou profissional capaz de atender as necessidades do paciente. Não comprovada a inexistência de profissional e estabelecimento credenciado aptos a realização da cirurgia. Preferência por um profissional determinado ou até mesmo a maior habilitação desse profissional em relação aos conveniados não cria o dever de custeio. Obrigação de cobertura do procedimento reconhecida, mas que deve ser realizado preferencialmente na rede credenciada. Sentença reformada. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO. (TJ-SP – AC: 10256643620208260577 SP 1025664-36.2020.8.26.0577, Relator: Clara Maria Araújo Xavier, Data de Julgamento: 01/06/2022, 8ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 01/06/2022)

Além da justificativa acima, há casos em que a recusa de custeio do tratamento se embasa no fato de o procedimento não estar incluído no Rol da ANS (tratamos em detalhes da impossibilidade de recusa de tratamento não incluído no Rol de Procedimentos da ANS em artigo próprio).

Sobre isso, ressaltamos entendimento já sumulado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo que firmou a orientação pela abusividade de negativa de cobertura a tratamento pelo simples fato de não constar no Rol de Procedimentos da ANS:

Súmula 102: Havendo expressa indicação médica, é abusiva a negativa de cobertura de custeio de tratamento sob o argumento da sua natureza experimental ou por não estar previsto no rol de procedimentos da ANS.

Desta feita, ante os esclarecimentos acima, bem como em razão do firme entendimento do TJSP pela abusividade das negativas de cobertura para procedimento de Transgenitalização, resta cristalino o direito do beneficiário do plano ao tratamento, que deve ser custeado integralmente pela operadora do plano de saúde.