A discussão sobre o dever de cobertura da fórmula à base de aminoácidos Neocate, indicada para crianças com alergia à proteína do leite de vaca (APLV), ganhou novo capítulo com a recente decisão da 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ). O tribunal reafirmou que, embora o produto não esteja listado no Rol de Procedimentos da ANS, a cobertura é obrigatória quando há recomendação da Conitec e incorporação da tecnologia pelo SUS, entendimento que reforça a proteção integral à saúde das crianças.
Assim como ocorre nos litígios envolvendo negativas injustificadas de cobertura (tema estruturado no arquivo-modelo), a decisão demonstra que cláusulas restritivas e justificativas administrativas não podem se sobrepor ao tratamento adequado e à prescrição médica.
1. A controvérsia: alimento ou tratamento?
A operadora negou o fornecimento da fórmula Neocate alegando que:
- seria um “alimento comum”,
- não teria finalidade terapêutica,
- não constaria no Rol da ANS.
Esse cenário é comum: planos de saúde tentam enquadrar terapias essenciais como itens meramente alimentares para escapar da obrigação de custeio. Entretanto, como pontuado pelo STJ, no caso da APLV grave, a fórmula não substitui apenas o leite, ela é o próprio tratamento médico, indispensável para evitar desnutrição, inflamação, sangramento intestinal, vômitos persistentes e risco de choque anafilático.
A ministra Nancy Andrighi destacou que a fórmula tem registro na Anvisa e é considerada tecnologia de saúde para bebês de 0 a 24 meses. Assim, não se trata de um suplemento alimentar qualquer, mas de recurso terapêutico específico, prescrito pelo médico assistente.
2. Conitec, SUS e o dever de cobertura dos planos
O ponto central da decisão foi a aplicação do artigo 10, §10, da Lei dos Planos de Saúde (Lei 9.656/98), que prevê que:
toda tecnologia incorporada ao SUS por recomendação da Conitec deve ser incluída no Rol da ANS no prazo de 60 dias.
A fórmula Neocate foi incorporada em 2018 como tratamento padrão para APLV grave.
Logo, mesmo que não esteja expressamente listada na cobertura mínima obrigatória, a operadora não pode negar o custeio.
O STJ reafirmou que:
- o Rol da ANS não é taxativo,
- a recomendação da Conitec tem força normativa,
- a prescrição médica deve prevalecer nas escolhas terapêuticas.
3. A proteção ao consumidor e o papel do Judiciário
A decisão também reforçou princípios reiterados pela jurisprudência:
– A relação entre beneficiário e plano é de consumo
Aplica-se o CDC, que determina a oferta de serviço adequado, seguro e contínuo.
– Cláusulas restritivas devem ser interpretadas em favor do consumidor
É vedado limitar tratamento prescrito, especialmente para crianças vulneráveis.
– A negativa injustificada configura abuso
Os tribunais reconhecem que negar tratamento essencial a crianças pode gerar danos morais, como confirmado no caso analisado.
Assim como demonstrado no arquivo-modelo, o Judiciário rechaça práticas que esvaziam a finalidade contratual e comprometem a assistência à saúde.
4. Limitação etária: até os dois anos de idade
O STJ determinou que o fornecimento deve ocorrer até os 24 meses, já que:
- a incorporação da Conitec é específica para essa faixa etária;
- o protocolo clínico para APLV estabelece que esse é o período crítico de tratamento.
Após essa idade, o quadro deve ser reavaliado pelo médico assistente.
5. Conclusão: um avanço na proteção das crianças com APLV
A decisão da 3ª Turma do STJ reafirma um entendimento essencial: o direito à saúde da criança não pode ser limitado por cláusulas contratuais padronizadas, nem por argumentos burocráticos.
O fornecimento da fórmula Neocate:
- é obrigatório,
- tem amparo legal,
- está alinhado à medicina baseada em evidências,
- e protege a vida e o desenvolvimento adequado da criança.
Sempre que houver prescrição médica fundamentada, registro na Anvisa e recomendação técnica — como ocorre nesse caso — a operadora deve custear o tratamento integralmente.
Beneficiários que enfrentarem negativas semelhantes devem buscar orientação jurídica especializada para exigir, inclusive por meio de liminar, o acesso imediato à fórmula.
