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O Dever de Continuidade Assistencial e a Cobertura de Parto de Alto Risco em Hospital Descredenciado

1. Introdução

A recente decisão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ), que determinou que uma operadora de plano de saúde cubra integralmente o parto de alto risco em hospital fora da rede credenciada, reafirma um princípio fundamental do Direito da Saúde: o dever de garantir a continuidade do tratamento médico, especialmente em situações de urgência e vulnerabilidade, como a gestação de risco.

O caso revela a importância do dever de informação previsto na Lei nº 9.656/98, e reforça o entendimento consolidado de que o descredenciamento de hospitais ou médicos sem comunicação prévia e individualizada ao beneficiário viola a boa-fé contratual, o Código de Defesa do Consumidor (CDC) e o próprio direito à saúde previsto no artigo 196 da Constituição Federal.

2. O Caso Concreto e o Contexto Fático

Uma gestante de alto risco ingressou em juízo após o plano de saúde negar cobertura para o parto e o acompanhamento na Maternidade Perinatal, local onde vinha realizando todo o pré-natal e sendo assistida pela mesma equipe médica.

A negativa baseou-se no argumento de que o hospital havia sido descredenciado da rede conveniada, o que, segundo a operadora, implicaria na inexistência de cobertura contratual.

Em primeira instância, o juízo negou o pedido da paciente, entendendo que a ausência de vínculo contratual com o hospital impedia a cobertura. Contudo, ao recorrer ao TJ-RJ, a autora demonstrou que não havia sido notificada previamente sobre o descredenciamento e que a mudança colocava em risco a continuidade do seu tratamento — o que levou à reforma da decisão.

3. O Dever de Informação e a Garantia de Continuidade Assistencial

O relator do recurso, Desembargador Eduardo Abreu Biondi, destacou que a operadora descumpriu o dever de informação previsto no art. 17, §1º, da Lei nº 9.656/98, segundo o qual:

“É obrigatória a comunicação aos consumidores e à ANS, com antecedência mínima de 30 dias, sobre o descredenciamento de prestadores de serviços, devendo ser garantida a substituição por outro de igual qualidade e capacidade.”

A jurisprudência é pacífica ao afirmar que o descredenciamento sem comunicação prévia e individualizada é ilegal e impõe à operadora o dever de assegurar a continuidade do atendimento, seja restabelecendo o vínculo com o prestador original, seja custeando o atendimento em outro hospital equivalente, inclusive fora da rede.

No caso concreto, o TJ-RJ determinou que o plano restabelecesse a cobertura na Maternidade Perinatal, com a mesma equipe médica que acompanhava a gestante, ou garantisse atendimento integral em unidade de mesmo porte e capacidade técnica.

4. Fundamentação Jurídica: Boa-fé, Transparência e Dignidade Humana

A decisão está em consonância com os princípios da boa-fé objetiva e da função social do contrato, previstos nos artigos 421 e 422 do Código Civil, que impõem deveres de lealdade, cooperação e transparência nas relações contratuais.

Além disso, o Código de Defesa do Consumidor (CDC) assegura ao consumidor o direito à informação adequada e clara (art. 6º, III) e considera abusiva a conduta que coloque o consumidor em desvantagem exagerada (art. 51, IV).

No contexto da saúde suplementar, esses dispositivos ganham relevo especial: o beneficiário não é mero contratante, mas um usuário de serviço essencial, cuja vida e integridade física podem ser diretamente afetadas por práticas desleais.

Negar o parto em hospital de referência sem aviso prévio e sem garantir alternativa equivalente viola o princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CF) e compromete o direito à saúde e à maternidade segura (art. 6º e 196 da CF).

5. A Jurisprudência e a Consolidação do Entendimento

O entendimento adotado pelo TJ-RJ está alinhado a decisões reiteradas de outros tribunais e do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que têm reconhecido o dever das operadoras de assegurar a continuidade assistencial em casos de descredenciamento irregular.

Entre os precedentes, destacam-se:

  • STJ – REsp 1.733.013/SP: “O descredenciamento de hospital sem comunicação individual ao beneficiário enseja o dever de custeio do atendimento fora da rede.”
  • TJ/SP – Apelação nº 1005293-94.2023.8.26.0003: “A ausência de aviso prévio e substituição equivalente configura falha na prestação do serviço e viola o princípio da boa-fé contratual.”
  • TJ/MG – AI 1.0000.21.160632-5/001: “O dever de continuidade assistencial prevalece, sobretudo, em casos de urgência e risco à saúde do consumidor.”

Tais decisões evidenciam a consolidação de uma jurisprudência protetiva, pautada no equilíbrio contratual e na efetividade do direito fundamental à saúde.

6. Implicações Práticas e Relevância Social da Decisão

O acórdão do TJ-RJ reafirma que o descredenciamento não pode interromper tratamentos em andamento, principalmente quando se trata de casos sensíveis como gestação de alto risco.

Na prática, essa decisão tem impactos diretos:

  • Para os consumidores: reforça o direito à informação e à continuidade assistencial, evitando rupturas abruptas em tratamentos críticos.
  • Para as operadoras: reforça a obrigação de agir com transparência e boa-fé, sob pena de arcar com multas diárias e danos morais.
  • Para a advocacia em saúde: amplia as possibilidades de atuação estratégica, permitindo a defesa imediata de gestantes e pacientes em situação de vulnerabilidade, por meio de tutelas de urgência.

A decisão do TJ-RJ fixou, ainda, multa diária em caso de descumprimento, reforçando o caráter coercitivo e preventivo da medida judicial.

7. Conclusão

O julgamento do TJ-RJ representa uma vitória importante na consolidação do direito à continuidade assistencial e ao parto seguro.
Ao determinar que o plano de saúde custeie o parto de alto risco em hospital descredenciado, a Corte reafirmou que o dever de informação e o princípio da boa-fé não são meras formalidades contratuais, mas instrumentos de efetivação do direito à saúde, à vida e à dignidade humana.

O Direito da Saúde, ao equilibrar as relações entre consumidores e operadoras, deve continuar a priorizar a proteção da parte vulnerável, especialmente em situações que envolvem gestantes, recém-nascidos e tratamentos de urgência.

Mais do que uma decisão judicial, este caso simboliza um compromisso ético e jurídico: a maternidade e a vida não podem esperar pela burocracia contratual.

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